domingo, 6 de novembro de 2011

alhures

quando escolhi o título o fiz à guisa de idéias que me movessem. alhures é uma palavra da qual gosto. já falecida, não tem correspondente: em algum lugar que não aqui. lembro do Tatit, então meu professor, professando.

gosto de imaginar que a timedez que me açoita - e que disfarço bem, vá lá - tem um local em algum lugar. que não aqui.

domingo, 8 de agosto de 2010

Morte do pai


Havia, num jogo bobo de vôlei, machucado o pé alguns dias antes.
Estava engessado. Às vezes pendo pro lado esquerdo e hoje as hérnias que me fustigam a coluna parecem relacionar-se a um certo desconforto com o equilíbrio. Era a segunda vez que machucava o pé. O mesmo. E da mesma forma. Lembrei-me agora – se bem que talvez não tenha sido assim – da primeira foi no vôlei, dessa, acho que foi tentando evitar um beijo de um aluno que a cerveja encorajara.

Enfim, estava no trabalho, um ano difícil com minha chefe, não queria
– e não sabia – me apartar de um evento que se avizinhava e que eu
produzia. Minha irmã me ligou. Falou que meu pai estava mal. E que
dessa vez estava mesmo mal. Sem credibilidade, sua fala mansa e
propensa a tragédias contornáveis, informava que sua saúde  se
agravara num sítio. Liguei para minha mãe. Calma, informou-me que ele estava em coma. E que talvez, fosse a visita última ao hospital.

Mais por cansaço e tédio que por compaixão eu queria que ele morresse. E acho que minha mãe também.

A reputação de ser confiável e esteio determinou meus passos.
Solicitei à secretária que comprasse uma passagem para BH – foi
caríssima – e deixei o escritório com uma bota na perna esquerda,
gesso na direita e uma bermuda cáqui. O táxi levou-me a Congonhas, o
avião a Pampulha, outro táxi à rodoviária. O ônibus deixou-me em
Itabira, um táxi colorido, levou-me ao hospital. Assim, umas 10 horas
depois, cumpria o que se esperava de mim. Encontrei meu pai dormindo e minha mãe não ficou surpresa em me ver. Dormi também. Acho que na casa dela, não no hospital.

Cedo, no dia seguinte fui ao hospital, com meu irmão que mora em uma fazenda em Itabira. Meu pai já estava acordado. Estava? Agora, acho mais que sim. Havia tomado banho. Parece que brincado com enfermeiras. "Luquinho!" expressou felicidade sincera – tudo já meio ingênuo, a doença o puerilizara. Com apetite, determinou: "empadinha". Assim foi feito. Fez relatos fantasiosos da noite anterior. Presenciara um soco com que um enfermeiro nocauteara
um paciente no corredor. Contou um mau-trato recebido. Chorou um
nadinha. Era delírio, também. E se fez feliz. Cantou. Uma música cujo
esquecimento me atormenta. Versava, creio, sobre engenheiros ou
arquitetos ou latrinas em Acesita. Ou tudo isso.

A mim, me pediu dobradinha. Uma conspiração só nossa. Prometi-lhe, este prato malcheiroso do qual gosto sem fervor e seu se tornou um elo entre mim e ele. Em minhas raras – cada vez mais – voltas a casa, preparava-o como uma declaração de afeto. Um carinho singular que espantava os outros e que a mim concedia cozinhando na panela de pressão os laços que já não tínhamos. Tivemos?

Ao açougue. Ao fogão. Às facas. Cebola não, ele não comia. Alegava alergia, definição comum em minha família onde desgostar de comida parece feio. Dobradinha pronta, ao estilo mondongo, somente com molho de tomate, preparei para o transporte: uma pequena vasilha, tipo marmita, de plástico marrom clarinho, com vedação consistente na tampa de alças que dobravam pra baixo e decorada com desenhos – flores? – de cor marrom um pouco mais
escura. Itabira caberia inteira ali.

Ao hospital. Temerosa – ele empaturrara-se de empadinha e vomitara no dia anterior – minha mãe coibiu o almoço. Meu pai pedia mendicante. Com autoridade absolutista com que se trata os enfermos, neguei-lhe. Pus no congelador da pequena geladeira – luxo que o quarto possuía. Prometi-lhe para o dia seguinte. Disse-me - no que hoje enquadro nos vaticínios proféticos que desesperadamente busco para doirar sua morte e me qualificar como interlocutor privilegiado de meu pai moribundo:"me dá hoje!, por favor, amanhã, não, não adianta mais" . Não dei.

Joguei fora alguns dias depois a dobradinha desperdiçada.

A alegria sincera que senti por vê-lo serelepe não inibiu o meu
desapontamento com sua provável recuperação e volta à casa e ao ciclo desagradável que agrilhoava minha mãe e minava seu orçamento frágil.

E, afinal, espera-se que moribundos morram.

Meu irmão me censurou brandamente a viagem, sugeriu que o consultasse em uma próxima internação buscando nele o discernimento de que minha mãe, acreditava, já não dispunha. De noite, o sono colheu-o tranqüilo.

E não devolveu mais. Novo coma. Quantos dias? 5? 30?

UTI: havia uma no hospital, nem sei se honrava o nome. Alguns médicos sugeriam sua internação. Outros, que não mais valia prorrogar seu sofrimento. Preferia estes que embasavam com saber diplomado meu temor por vê-lo outra vez em casa, outra vez aéreo, outra vez fedendo a fezes naquele saco asqueroso que era obrigado a portar na barriga.

Outra vez incomodando minha mãe que – penso – ansiava por alforria.
Acho que minhas irmãs prefeririam interná-lo na UTI. Uma estava
distante, em viagem de férias. Outra carecia de qualquer autoridade
familiar. A terceira confundia-se com a filha bebê. Acho que meus
irmãos e mãe, preferiam-no no quarto. Eu queria que morresse. Sem
muita demora. E tenho certeza pétrea – sempre tive, mesmo então – de
que, fosse eu o enfermo, ele me internaria na UTI e empurraria para
mais adiante cada batida que meu músculo cardíaco pudesse dar.

Demorou 2 eternidades. Como se espera de mim, fiz guarida do hospital. Vi seus olhos perderem o viço – me lembraram os de peixe na feira.

Aliás, o ar que buscava nos momentos derradeiro, faziam no movimentar a boca como um douradinho de aquário que acidentalmente sai do vasilhame. Dizem que não sentiu dor. Ora
sim, ora não, acredito.

Foi velado no cemitério de Itabira, uma das capelas (acho que o nome
não é este) destinada aos corpos que se enterrarão no dia seguinte.
Visitado por curiosos. Desejaram-me pêsames. Eu só queria um pouco de sono. Estávamos – eu estava – preparados para uma explosão de afeto e dor. Um padre enfadonho e burocrático minou-me a performance possível.

Muita gente acompanhou o caixão nos 80 metros que separavam a cova da capela (?). Achei pobre a tampa de granizo e desejei anjos de mármore, mas na verdade, minha referência de enterros são só televisivas e cinematográficas. Um certo torpor de alivio e cansaço tomava conta de mim. Era estimulado e afastado pelo ritual que se seguiu. Alguns depoimentos patéticos. Um coro entoou a inacreditável Coração de Estudantes. Penso que, se ele estivesse vivo e no enterro de alguém, acharia tão ridículo quanto eu.
Mas cantaria. Tinha em si – apesar do enorme narcisismo – uma incrível generosidade que se solidarizava com os apuros alheios. Eu não cantei.

Voltamos a casa de meus pais e meu irmão. Os móveis estavam mais
cansados. Alguém sugeriu uma sorveteria. Também não acho que Chicabom rime com enterros, mas pareceu-me uma transgressão simpática que, revelaria pelo oposto, o quanto a dor tocava a família que já tinha forma de elabora-la. Foi, ao fim, apenas uma sorveteria ruim de interior.

De volta fiz uma visita a seu quarto, desejando ser notado e deixado
em paz. Violei seu guarda-roupa. Os ternos que não mais lhe serviam.
Muitos, muitos. Uma calça azul, de lã vaidosa. Um furo na costura do
bolso. Dois pares de meia puídos onde os dedos pressionam o sapato.
Não tinha aparelho de som.

A cama de solteiro que minorava no colchão os danos causados pelos dissabores da doença. Na carteira, fotos dos
filhos. Uma carta escrita a meu irmão.

6 anos se foram. Ou mais? O alívio não existe. Encontro-o sempre em
quase tudo que me rodeia ou faço. Constantemente esqueço que ele
morreu. E se não tivesse? Acho que nada seria diferente. A pobreza
seqüestrou-lhe a autoridade, a velhice, o crédito. Acho que a
resignação ante a humilhação geral que atravessou no fim, mais me
irritava do que seduzia. Fiz parte. Não lhe cedi carinho, conforto e
nem muito amor. Tinha muitas dívidas a lhe cobrar. Sobretudo, não lhe
cedi tempo. Fiz o adequado. Mas bem feito. Bem visto.

Hoje, tenho um cartão de credito que não honro e a crença de que isso talvez seja ser adulto. Não fiquei calvo. Mas encaneci um pouco. À parte isso, sou o mesmo de trinta anos atrás, um pouco rejeitado, nem tanto, louco para que ele chegue da rua e entre no quarto comigo onde vou falar e reclamar e conversar bobagens que ele definiria tão bem. Difiro porque hoje acho lindo um canário numa gaiola, o que sempre odiei. Tivesse ele podido, teria tido, até o fim, bicudos e curiós. Acho lindo também.